Os Sertões, obra-prima de Euclides da Cunha publicada em 1902, é muito mais do que um relato histórico da Guerra de Canudos (1896-1897). É um estudo profundo e multifacetado sobre o homem, a terra e a luta no sertão nordestino brasileiro, que transcende o mero jornalismo para se tornar um ensaio épico de fôlego científico e literário, fundamental para a compreensão da identidade nacional.
A obra divide-se em três partes interligadas, começando com “A Terra”. Nesta seção, Euclides descreve de forma minuciosa e com rigor científico a geografia, a geologia e o clima do sertão. Ele retrata um ambiente hostil, de paisagem árida, vegetação castigada e chuvas irregulares, onde a natureza impõe desafios extremos e molda de maneira decisiva a vida de seus habitantes.
Essa descrição implacável do ambiente serve de prelúdio para a segunda parte, “O Homem”. O autor argumenta que o sertanejo não é apenas um produto do seu meio físico, mas uma figura complexa, forjada pela adversidade. Euclides explora a fisiologia, os costumes, a psicologia e a cultura desse povo esquecido, muitas vezes com um olhar influenciado pelas teorias raciais e positivistas da época, embora ressaltando sua resiliência e capacidade de sobrevivência.
Dentro de “O Homem”, destaca-se a figura carismática de Antônio Conselheiro, líder messiânico que reuniu milhares de desvalidos em Canudos, um arraial no interior da Bahia. Conselheiro, com sua pregação religiosa e promessas de um mundo melhor, tornou-se o catalisador de um movimento que, para as autoridades da recém-proclamada República, representava uma ameaça à ordem social e política estabelecida.
Avançando para a terceira e mais extensa parte, “A Luta”, Euclides da Cunha narra o conflito bélico entre o arraial de Canudos e o exército republicano. Inicialmente, o governo subestimou a força e a organização dos sertanejos, enviando pequenas expedições que foram fragorosamente derrotadas, o que apenas aumentou a percepção de Canudos como um foco de resistência perigoso.
À medida que as derrotas se sucediam, o governo central mobilizou forças militares cada vez maiores, transformando a guerra em uma campanha de proporções gigantescas. A obra descreve com detalhes a estratégia militar, a bravura e o desespero de ambos os lados, bem como a brutalidade crescente dos combates, a escassez de recursos e o sacrifício imposto tanto aos soldados quanto aos habitantes do arraial.
Euclides, que atuou como correspondente de guerra, testemunhou pessoalmente muitos dos eventos, o que confere à sua narrativa um tom vívido e, por vezes, angustiante. Ele não poupa críticas à incapacidade do exército de compreender a natureza do inimigo e à selvageria das táticas empregadas, que culminaram em um verdadeiro genocídio da população de Canudos.
A queda de Canudos foi marcada pela resistência fanática dos últimos defensores e pela aniquilação total do arraial. A obra atinge seu clímax com a descrição do massacre final, onde mulheres, crianças e velhos foram dizimados, deixando para trás um cenário de completa devastação e um legado de vergonha para a República.
No desfecho, Euclides da Cunha reflete sobre a ironia e a tragédia do conflito. Ele conclui que a guerra foi um erro colossal, onde a civilização (o exército republicano) se comportou de forma bárbara, e os “bárbaros” (os sertanejos) demonstraram uma resistência e uma fé inabaláveis. A obra é um lamento pela destruição de um povo e uma denúncia da ignorância e da intolerância.
“Os Sertões” é, em essência, um grito de alerta para as desigualdades sociais e a desconexão entre o litoral e o interior do Brasil. Sua relevância perdura como um documento histórico, um ensaio sociológico e uma obra literária de rara potência, que questiona os pilares da identidade brasileira e o preço pago pela formação da nação.



